Dia: 13 de julho de 2023

  • É permitido o uso de inteligência artificial generativa para criar e explorar conteúdos “novos” por meio da reconstrução digital da voz e/ou da imagem de pessoa falecida?

    Recentemente, em entrevista para o programa Today, da BBC Radio 4, da Inglaterra, Paul MacCartney afirmou que uma nova música está sendo produzida com o uso de inteligência artificial para “criar” a voz de John Lennon1. Segundo Paul, a voz de John foi extraída de uma gravação em fita cassete cedida por Yoko Ono (viúva de John).

    Outro caso que gerou repercussão – que ocorreu no Brasil – foi o comercial da Volkswagem que reconstruiu, com o uso de inteligência artificial, a imagem da cantora Elis Regina – falecida em 1982 -, para participação no comercial com sua filha, Maria Rita2.

    Por fim, de acordo com notícia divulgada pela Folha de São Paulo, no dia 10/7/23, a cantora Madonna teria, supostamente, proibido a recriação da sua imagem para a realização de shows após a sua morte, tendo em vista o receio de que venham a manchar a sua carreira por meio de recriações digitais3.

    No caso do comercial da Volkswagem, o Conar, após consumidores questionarem a ética do uso da inteligência artificial para reproduzir a imagem de pessoa falecida, deu início a um processo administrativo para analisar o caso. Além disso, o Conar analisará a validade ou não da autorização de herdeiros para o uso da imagem de pessoa falecida em peça criada por meio de Inteligência Artificial.

    Tais notícias levantaram alguns questionamentos: Se vivos, essas pessoas desejariam gravar a música ou participar do comercial? Desejariam elas, quando vivas, diante da possibilidade atual, que a sua voz e/ou a sua imagem fossem manipuladas após a morte para criação de nova(s) canção(ões), solo ou em parcerias, comerciais, shows, etc?

    Desses questionamentos, surgiu o seguinte questionamento jurídico: É permitido o uso de inteligência artificial generativa para criar e explorar conteúdos “novos” por meio da reconstrução digital da voz e/ou da imagem de pessoa falecida?

    Por primeiro, é importante destacar que, embora a reconstrução digital de imagem e/ou de voz não seja algo atualíssimo, é certo que o aprimoramento das tecnologias de inteligência artificial (generativa) tem ensejado reconstruções cada vez mais verossímeis, que viabilizam a criação de conteúdos “novos” – e não somente a manipulação/alteração de um conteúdo existente -, que podem ser considerados como verdadeiros/reais por pessoas que não têm o conhecimento e o “olhar técnico” para, de imediato, entender que o conteúdo foi criado por meio de reconstrução digital da imagem e/ou da voz. O fenômeno das deep fakes4 é uma das problemáticas decorrentes da reconstrução digital de imagem e/ou voz por meio de inteligência artificial generativa.

    Pois bem, com relação à voz e à imagem como direitos individuais legalmente protegidos pela legislação brasileira, cumpre destacar, o seguinte:

    O artigo 5º, incisos X e XXVIII, alínea “a”, da Constituição Federal, estabelecem, respectivamente, que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”, e que são assegurados, nos termos da lei, “a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas”.

    O artigo 12 do Código Civil estabelece que “pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”, e que “em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau” (parágrafo único).

    O artigo 20 do Código Civil, por sua vez, estabelece que:

    Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais.

    O parágrafo único complementa o artigo 20 do Código Civil que, “em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes”.

    Voz e imagem são, nesse sentido, direitos da personalidade – que, lembre-se, são intransmissíveis e irrenunciáveis, conforme disposto no artigo 11 do Código Civil – constitucional e infraconstitucionalmente protegidos, inclusive com a possibilidade de proteção pós morte por parte de qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.

    A lei Geral de Proteção de Dados – LGPD, estabelece ser dado pessoal a informação relacionada a pessoal natural identificada ou identificável. Neste sentido, sendo a voz e a imagem capazes de identificar ou tornar uma pessoa identificável, são elas dados pessoais protegidos, também, pela referida legislação. No caso, o tratamento da voz e da imagem – salvo exceções legais não aplicáveis aos dois casos concretos acima expostos – demanda consentimento por parte do titular.

    Por fim, em termos de legislação especial relativa a direitos autorais, a imagem e a voz encontram amparo na lei 9.610/98, que, dentre outras, dispõe sobre a proteção de obras audiovisuais e de fonogramas, cujos conceitos legais – dispostos, respectivamente, nos incisos VII, alínea “i”, e IX, do artigo 5º -, para melhor compreensão, são os seguintes:

    i) audiovisual – a que resulta da fixação de imagens com ou sem som, que tenha a finalidade de criar, por meio de sua reprodução, a impressão de movimento, independentemente dos processos de sua captação, do suporte usado inicial ou posteriormente para fixá-lo, bem como dos meios utilizados para sua veiculação;

    IX – fonograma – toda fixação de sons de uma execução ou interpretação ou de outros sons, ou de uma representação de sons que não seja uma fixação incluída em uma obra audiovisual;

    O artigo 22 da referida lei dispõe que “pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou”, cujo complemento se observa no artigo 24, que dispõe sobre os direitos morais do autor nos seguintes termos:

    Art. 24. São direitos morais do autor:

    I – o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra;

    II – o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra;

    III – o de conservar a obra inédita;

    IV – o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;

    V – o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada;

    VI – o de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem;

    VII – o de ter acesso a exemplar único e raro da obra, quando se encontre legitimamente em poder de outrem, para o fim de, por meio de processo fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo caso, será indenizado de qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado.

    O artigo 29, também da lei 9.610/98, estabelece, como regra, que:

    Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:

    I – a reprodução parcial ou integral;

    II – a edição;

    III – a adaptação, o arranjo musical e quaisquer outras transformações;

    IV – a tradução para qualquer idioma;

    V – a inclusão em fonograma ou produção audiovisual;

    VI – a distribuição, quando não intrínseca ao contrato firmado pelo autor com terceiros para uso ou exploração da obra;

    VII – a distribuição para oferta de obras ou produções mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para percebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, e nos casos em que o acesso às obras ou produções se faça por qualquer sistema que importe em pagamento pelo usuário;

    VIII – a utilização, direta ou indireta, da obra literária, artística ou científica, mediante:

    representação, recitação ou declamação;
    execução musical;
    emprego de alto-falante ou de sistemas análogos;
    radiodifusão sonora ou televisiva;
    captação de transmissão de radiodifusão em locais de freqüência coletiva;
    sonorização ambiental;
    a exibição audiovisual, cinematográfica ou por processo assemelhado;
    emprego de satélites artificiais;
    emprego de sistemas óticos, fios telefônicos ou não, cabos de qualquer tipo e meios de comunicação similares que venham a ser adotados;
    exposição de obras de artes plásticas e figurativas;

    IX – a inclusão em base de dados, o armazenamento em computador, a microfilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero;

    X – quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas.

    Especificamente, com relação ao intérprete, o artigo 92 estabelece o seguinte com relação aos direitos morais:

    Art. 92. Aos intérpretes cabem os direitos morais de integridade e paternidade de suas interpretações, inclusive depois da cessão dos direitos patrimoniais, sem prejuízo da redução, compactação, edição ou dublagem da obra de que tenham participado, sob a responsabilidade do produtor, que não poderá desfigurar a interpretação do artista.

    Importa lembrar que os direitos patrimoniais relacionados à voz e/ou imagem (consubstanciados em fonogramas ou obras audiovisuais, por exemplo), são passíveis de cessão e transmissibilidade. Logo, ocorrendo o falecimento do (a) autor (a) e havendo sucessores, por exemplo e se o caso, a estes serão transmitidos os direitos patrimoniais relativos à obra, e caberá a eles o direito de reivindicar, explorar e proteger.

    Em vista do exposto, é possível afirmar que não há dúvidas com relação à proteção legal do direito à voz e à imagem de pessoas vivas, bem com relação à proteção das pessoas falecidas – cuja iniciativa fica a cargo do cônjuge, dos ascendentes ou dos descendentes, especialmente com relação a obras fonográficas e/ou audiovisuais (quando o caso). Por óbvio, o objetivo é que a pessoa tenha a sua honra, reputação e/ou obras protegidas, em vida ou após a morte.

    É importante destacar que a legitimidade dos sucessores – ou de quem de direito -, para proteger, reivindicar e explorar direitos patrimoniais relacionados a obras fonográficas ou audiovisuais diz respeito a obras originalmente existentes quando do falecimento da pessoa – ou seja, conteúdos originais, cuja pessoa, de algum modo, concordou com ele quando gravou, atuou, produziu, divulgou, etc.

    Ocorre que, com o advento da inteligência artificial, a imagem e/ou voz das pessoa podem ser alteradas e editadas para criar novos conteúdos (comerciais, filmes, vídeos, canções, entre outras possibilidades), tudo isso sem que haja o consentimento e autorização do titular da imagem e/ou voz – já que morto, obviamente -, de modo que não há como saber se a pessoa concordaria ou não com os novos conteúdos criados por meio da reprodução da sua voz e/ou da sua imagem. Nesse sentido, indaga-se: Os sucessores têm legitimidade para permitir a reconstrução digital de pessoa morta para a produção de conteúdos novos?

    Com relação à proteção do direito à voz e à imagem de pessoa morta, frente ao uso de inteligência artificial generativa para a reconstrução digital, mediante interpretação teleológica-sistemática, é possível afirmar que, considerando que voz e imagem são direitos da personalidade irrenunciáveis e intransmissíveis, e dados pessoais cujo tratamento demanda consentimento do titular, com base de proteção constitucional e infraconstitucional – inclusive com legislação específica quando se trata de obra audiovisual e/ou de fonograma -, para todos os efeitos, salvo disposição em sentido contrário – formal e validamente manifestada pela pessoa em vida -, é vedado o uso de inteligência artificial generativa para criar e explorar conteúdos “novos” por meio da reconstrução digital da voz e/ou da imagem de pessoa falecida, não tendo os sucessores, portanto, legitimidade para permitirem o uso neste sentido

    Em que pese essa conclusão, diante da ausência de regulamentação específica, com o objetivo de evitar discussões futuras post-mortem acerca da possibilidade ou não, bem como dos limites – quando o caso – do uso de inteligência artificial generativa para criar e explorar conteúdos “novos” por meio da reconstrução digital da voz e/ou da imagem de pessoa falecida, é recomendável que a pessoa que não deseja a sua reconstrução digital ou que tem limitações quanto a isto, expresse a sua vontade ainda em vida, por meio de testamento e/ou contrato escrito, conforme o caso, de modo a evitar ou limitar o uso para este fim após sua partida.

    ———————–

    1 Disponível em: https://www.bbc.co.uk/programmes/p0ftvczc. Acesso em 13 de junho de 2023.

    2 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/389733/conar-abre-processo-etico-contra-volks-por-imagem-de-elis-em-comercial . Acesso em 10 de julho de 2023.

    3 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/07/madonna-proibe-que-usem-hologramas-para-recria-la-em-caso-de-morte-diz-jornal.shtml. Acesso em 11 de julho de 2023.

    4 Para uma compreensão sucinta e objetiva, vide : https://jornal.usp.br/ciencias/como-inteligencia-artificial-deepfakes-e-agencias-de-checagem-atuam-na-arena-da-desinformacao/.

     

    João Felipe Oliveira Brito

    Sócio no OBMA Advogados | Professor Universitário | Especialista em Direito Civil e Processo Civil e Mestre em Direito pela FMU.

    Déborah Samara da Cruz Gondim

    Advogada. Graduada em Direito pela FMU. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela EPD. MBA Executivo em Direito: Gestão e Business Law pela FGV/SP.

  • Estratégia Jurídica para Bancos – Demandas fundadas unicamente na “palavra do consumidor” e a hermenêutica jurídica como instrumento a favor das instituições financeiras

    Ao longo das últimas décadas, as “[…] relações jurídicas – relações de consumo, por exemplo – adaptaram-se ao universo digital, passando a ter etapas digitais e, até mesmo, a serem firmadas de forma totalmente digital, sem a presença física dos contratantes (consumidor e fornecedor, no caso) […]”1. Ou seja, muitas relações jurídicas, atualmente, não são formalizadas por meio de um instrumento de papel com a rubrica e a assinatura apostas de próprio punho pelos envolvidos, na presença de testemunhas (se o caso), mas sim por meio de autenticação/assinatura eletrônica por meio do uso de senha, código, biometria, certificado, de forma digital e on-line, a qualquer hora, de qualquer lugar do planeta, sem a intervenção de uma terceira pessoa.

    Se você abrir, agora, o aplicativo de internet banking da instituição financeira em que você tem maior movimentação financeira, provavelmente encontrará oferta de crédito imediato, que poderá ser contratado por meio do próprio aplicativo (sem a intervenção do gerente, sem a necessidade de comparecimento à agência bancária, sem a necessidade de assinatura em documentos físicos), com a liberação imediata do dinheiro na sua conta bancária, por meio de contratação com autenticação/assinatura eletrônica do correntista.

    Liberado o crédito contratado, você terá a possibilidade de, dentro do limite diário, fazer, por exemplo, uma transferência instantânea via PIX – para pagar uma dívida, ajudar um familiar, entre outras possibilidades -, também sem a intervenção direta de algum preposto da instituição financeira. Tudo isso -dependendo do aparelho celular, da velocidade da internet e da habilidade da pessoa – pode ser realizado em menos de dois minutos – o que, num passado não muito distante, demoraria horas ou dias, a depender do caso, para concluir todas as transações.

    Importa destacar, incremento da contextualização fática, que, atualmente, segundo a Pesquisa Febraban de Tecnologia Bancária, 80% das transações bancárias no Brasil são realizadas por meios digitais. Neste sentido, as transações bancárias devem ser enxergadas tais como são em sua maioria atualmente: Digitais2!

    Pois bem, é importante lembrar, brevemente, que o Código Civil estabelece que a validade do negócio jurídico requer agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e forma prescrita ou não defesa em lei (art. 104), e que “a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir” (art. 107). Além disso, estabelece que a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que, dentre outros (art. 113): “I – for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; II – corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; III – corresponder à boa-fé”.

    Nesse sentido, é correto afirmar que o fato de um determinado negócio jurídico não estar consubstanciado num instrumento físico escrito e assinado de próprio punho pelas partes, não o invalida de plano.

    Pode parecer uma afirmação óbvia para alguns. Entretanto, ela se faz necessária, tendo em vista que há quem já tenha afirmado – em sentença, num passado recentíssimo – que a comprovação – mediante a apresentação do registro de acesso e transação -, pela instituição financeira, no sentido de que a transação impugnada havia sido realizada com autenticação/assinatura eletrônica não é suficiente para comprovar a contratação, já que ausente instrumento assinado pelo correntista.

    A evolução tecnológica e a adaptação das relações e negócios jurídicos a ela proporcionaram a facilidade de, por exemplo, realizar transações bancárias em minutos – até mesmo, em segundos, a depender da situação -, de qualquer lugar do planeta. Por outro lado, há aqueles (as) que, maliciosamente, podem utilizar de subterfúgios para tentarem obter vantagem indevida sobre as instituições financeiras. Explicamos:

    Imagine que uma pessoa formaliza, por meio do aplicativo de internet banking, a contratação de empréstimo bancário, uma transferência bancária, um pagamento, entre outras operações possíveis, e depois, arrependida, mal intencionada e/ou mal orientada, sem sequer fazer contato pretérito com a instituição financeira, propõe ação visando o cancelamento da operação sob o argumento de que não a reconhece, sem, entretanto, apresentar qualquer indício ou comprovação de irregularidade na transação, bem como a condenação da instituição ao pagamento de indenização por dano material e/ou moral.

    Nessa situação a instituição financeira terá como prova o registro (log) de acesso e autenticação da operação, que conterá as informações de acesso do correntista na plataforma digital por meio de uso de senha, código, biometria, entre outras possibilidades. O consumidor, por sua vez, terá a sua palavra no sentido de que não reconhece a transação e que, então, decorreria erro ou fraude.

    Situações como essa podem gerar demandas judiciais que são fundadas, unicamente, na palavra do correntista/consumidor/requerente, devendo aqueles que nelas atuarem, mas especialmente o juízo, ter atenção redobrada, tendo em vista que se o Judiciário considerar que para a caracterização de responsabilidade das instituições basta a alegação do consumidor no sentido de que teria, por exemplo, sido vítima de fraude, mesmo diante de circunstâncias que, legitimamente, fazem crer que a operação ocorreu dentro dos padrões normais de segurança – uso de senha ou código de segurança na operação realizada; compatibilidade da operação com a movimentação financeira da conta; e da inexistência de comunicação de ocorrência de perda, furto ou roubo de cartão, documentos pessoais, etc. – e normalidade, a sociedade como um todo poderá ser colocada numa posição delicada e temerária, já que pessoas mal intencionadas e/ou orientadas, podem vir a utilizar de subterfúgios objetivando se esquivarem das obrigações bancárias assumidas.

    Nesse sentido, cumpre lembrar que, em termos de responsabilidade civil, mesmo nos casos de responsabilidade objetiva, para efeito de responsabilização, é indispensável que haja a prática de ato pelo suposto ofensor e a existência de nexo causal entre o ato e o dano supostamente suportado pelo (a) ofendido (a).

    Em vista disso, em situações como a acima exposta, é importante que a instituição financeira fundamente adequadamente a impossibilidade de inversão do ônus da prova, destacando a diabolicidade de eventual decisão neste sentido, já que, diante de uma situação em que os registros (logs) evidenciam que a operação foi realizada dentro dos padrões e circunstâncias normais de segurança e consumo, a instituição financeira se verá diante de uma situação difícil, já que não há como fazer prova de algo que não existiu (o que pode favorecer indevidamente pessoas mal intencionadas e/ou mal orientadas); e, no mérito, a inexistência de elementos que evidenciem irregularidade na transação impugnada, bem como a inexistência de fortuito interno capaz de ensejar a sua responsabilização, sempre com destaque ao fato de o (a) requerente não ter feito prova do fato constitutivo do seu direito.

    Em vista disso, quando da análise da validade ou não do negócio jurídico, é imperioso que o (a) operador (a) do direito (na posição de advogado ou de magistrado, por exemplo) verifique se o negócio jurídico analisado cumpriu ou não os requisitos mínimos para a validade (art. 104 e seguintes do Código Civil). Para tanto, é importante que, na análise do caso concreto, as circunstâncias que circundam os fatos narrados e comprovados (ou não) pelas partes, especialmente em situações em que a demanda é unicamente fundada na palavra do (a) consumidor (a), sejam adequadamente levadas em consideração pela instituição financeira (na medida do possível, “destrinchar” a transação impugnada e modo a encontrar inconsistências na narrativa apresentada na inicial), já que a apresentação de defesa “padrão” – em razão da escassez de subsídios probatórios em situações como a descrita – tem considerável probabilidade insucesso. Neste sentido, a hermenêutica jurídica é fundamental.

    De acordo com Roberto Senise Lisboa e João Felipe Oliveira Brito, o problema da hermenêutica jurídica se revela,

    “[…] como um problema filosófico mais amplo, não se limitando à questão da ”incidência” de uma norma a um caso […]” (SOLON, 2017, p. 106). Trata-se de um problema voltado à criação de significado jurídico, de atribuição de sentido, levando-se em conta os diversos aspectos que cercam a situação concreta.

    A criação de um significado jurídico exige um compromisso de compreensão do direito por meio da identificação dos nomos apresentados no caso concreto, por meio da identificação de todos os mundos possíveis. Exige-se uma narração. O alcance do significado jurídico se define “[…] tanto por um texto legal que objetiva a demanda, como por uma multiplicidade de compromissos implícitos e explícitos que a acompanham” (COVER, 2002, p. 75)3.

    Diante disso,

    Levando-se em consideração que sociedade brasileira (e mundial), em razão da rápida e crescente evolução tecnológica, vem passando por grandes modificações, cujos reflexos pode ser observados direta e indiretamente nas relações jurídicas, sociais e culturais, e que não há a proporcional transformação e evolução do ordenamento jurídico, gerando, assim, conflitos e questionamentos no âmbito da atividade jurídica acerca de como o direito deve ser interpretado e aplicado às relações jurídicas modificadas e criadas, torna-se ainda mais imperiosa busca por novas maneiras de interpretar o direito, de modo a se reestabelecer o equilíbrio nas relações jurídicas […]4.

    Nesse sentido, no momento de interpretar e aplicar as normas legais em demandas fundadas somente na “palavra do consumidor”, deve o operador do direito (advogado/advogada da instituição financeira e o juízo) utilizar da hermenêutica jurídica para que a narrativa apresentada seja analisada, e a legislação vigente interpretada e aplicada, de acordo com as circunstancias de mundo (sociais, econômicas, etc.) do momento em que os fatos ocorreram, de modo que a solução do caso não destoe da realidade nele observa, e não se mostre ancorada a circunstâncias passadas não aplicáveis ao caso (tal como exigir instrumento físico assinado de próprio punho pelo correntista em contratação de empréstimo realizada por meio do aplicativo de internet banking).

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    1 Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/revistadgrc/article/view/5392/pdf. Acesso em: 04 mar. 2023.

    2 Febraban Tech: 80% das transações bancárias já são digitais no Brasil. Disponível: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/febraban-tech-80-das-transacoes-bancarias-ja-sao-digitais-no-brasil/. Acesso em: 29 de junho de 2023.

    3 Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/revistadgrc/article/view/5392/pdf. Acesso em: 04 mar. 2023.

    4 Ibidem

    João Felipe Oliveira Brito

    Sócio no OBMA Advogados | Professor Universitário | Especialista em Direito Civil e Processo Civil e Mestre em Direito pela FMU

    Fonte: Migalhas (https://www.migalhas.com.br/depeso/389460/demandas-fundadas-unicamente-na-palavra-do-consumidor)

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